Desculpabilização gosto de levar vantagem em tudo
Desculpabilização: "gosto de levar vantagem em tudo"
Embora o conceito de culpa perpasse praticamente toda a obra de Freud, recorreremos à discussão a partir dos textos das teorias da cultura desse autor. Tal recorte favorece nossa compreensão acerca do sujeito na sociedade pós-moderna, já que nesses textos o conceito de culpa está relacionado ao conflito presente entre as exigências individuais e as sociais.
Em Totem e tabu, Freud forja a tese de que a violência e a culpa são condição da cultura, relatando o mito do parricídio primordial. Nele é localizado o início da organização social, das restrições morais e da religião com o advento do ato criminoso, em que os filhos, subjugados pelo pai tirano, que de maneira violenta proibia o acesso às mulheres, unem-se e assassinam o pai. A consolidação do ato parricida se dá com a refeição totêmica. De acordo com Freud (1913[12] /1996) "Selvagens e canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima" (p. 145). Embora odiassem o pai, amavam-no e admiravam-no também, sendo o canibalismo o protótipo de um mecanismo de identificação.
O pai morto tornara-se mais forte do que vivo. Foi a partir do sentimento de culpa filial e da necessidade de preservar a comunidade que proibiram a morte do totem, substituto do pai, e renunciaram às mulheres, proibindo o incesto. é, portanto, o sentimento de culpa que une a sociedade a partir de um crime comum. Assim, para Freud, tanto a violência quanto a culpa são fundadoras da estrutura social.
Também em O mal-estar na cultura (1930/1996), Freud refere-se à violência e à culpa como condições de surgimento da cultura. Ele assevera que a inclinação para a agressão constitui no homem uma disposição instintiva original, autossubsistente e é o maior impedimento à civilização. Será o sentimento de culpa, o agente responsável pelo domínio desse perigoso desejo de agressão do indivíduo.
Freud define uma ordem primitiva da culpa que se revela na criança pelo medo da perda do amor dos pais. Esse primeiro estágio do sentimento de culpa se modifica a partir do édipo, quando o lugar dos genitores é assumido pela comunidade humana. Trata-se do segundo estágio do sentimento de culpa, que se realiza quando a autoridade é internalizada com o estabelecimento do superego.
As duas origens do sentimento de culpa descritas por Freud nesse texto apontam a necessidade de renúncia pulsional. No entanto, com relação ao superego, a renúncia pulsional não basta, já que o desejo persiste e não pode ser escondido deste, acarretando o sentimento de culpa e a necessidade de punição. Nesse ponto, Freud delineia a origem dialética da consciência.
De início, a consciência é a causa da renúncia pulsional e posteriormente a relação se inverte. A renúncia2 torna-se uma fonte dinâmica de consciência e a cada nova renúncia, aumenta a severidade e intolerância dessa última. Assim, a consciência é o resultado da renúncia pulsional, e esta por sua vez cria a consciência que exige mais renúncias. é nesse sentido que Freud assevera que o sentimento de culpa, a severidade do superego, é o mesmo que a severidade da consciência. é a percepção que o ego precisa estar sendo vigiado e a avaliação da tensão entre os seus próprios esforços e as exigências do superego.
Assim, a cultura como obra de Eros somente alcança seu objetivo a partir de um fortalecimento do sentimento de culpa. Porém, há um preço a pagar pela sua edificação: paga-se com a perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.
Observamos na atualidade diversos atravessamentos sociais que incidem de maneira contundente no sujeito. Características como o individualismo exacerbado, a política neoliberal e o capitalismo buscando ocupar um lugar norteador das relações são observadas nas relações contemporâneas. Com os efeitos dos novos arranjos sociais, balizados por tais características, vislumbramos uma nova configuração que incide substancialmente na subjetividade contemporânea.
Com Freud, vimos que o sentimento de culpa é estruturante do psiquismo e condição de possibilidade do surgimento da cultura. Nesse sentido, quais seriam os efeitos do esvanecimento da culpa na cultura contemporânea? é possível afirmar que a sociedade pós-moderna é uma sociedade perversa?
Read. 1894 Time.