Sair do centralismo e do culto sem vida
Sair do centralismo clerical e do culto sem vida
É teologia fontal da Igreja cristã que o batismo estabelece entre seus membros uma igualdade fundamental. De fato, o apóstolo Paulo escreveu: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo” (Gl 3,28).
Com o tempo, porém, as relações fraternas e igualitárias entre os membros da Igreja foram contaminadas por desigualdades e discriminações. As mulheres, submetidas desde muito cedo ao crivo do patriarcalismo, têm sido as mais prejudicadas. Os ministérios foram clericalizados e hierarquizados, com nuances estranhas à mensagem e à prática de Jesus. Isso resultou numa institucionalização empobrecida e fechada no mundo clerical masculino, em detrimento do carisma (SOBERAL, 1989, p. 175-177; 290; 331-332).
No Concílio Vaticano II, o aggiornamento da compreensão da Igreja sobre si mesma deu primazia ao povo de Deus em sua totalidade. A partir do concílio e com base na dignidade de todas as pessoas batizadas, a hierarquia e os ministérios específicos são redimensionados. Por isso, o papa Francisco afirma que as funções na Igreja não legitimam a superioridade de uns sobre os outros. Acima do ministério sacerdotal está a dignidade e a santidade acessível a todos e todas (EG 104).
Nos meses atípicos da pandemia, não faltaram testemunhos de atuação de membros da Igreja conscientes dessa doutrina e coerentes com ela. Segmentos do laicato católico, junto com sacerdotes, religiosas e religiosos, prepararam e conduziram, na internet, importantes seminários, ciclos de formação, momentos de espiritualidade e de liturgia que celebra a vida e a luta. A ação pastoral caminhou, com seus serviços específicos, na comunhão das Igrejas locais e da Igreja universal. E o exercício consciente da “cidadania batismal” se fez sentir, na corresponsabilidade de todos enquanto participantes do ministério comum de líderes-pastores, sacerdotes e profetas.
No entanto, também apareceram descompassos: o de um laicato reduzido a ajudante do padre e quase somente ao redor do altar do culto, e o de padres restritos ao altar, que enviaram aos fiéis mensagens quase sempre de mão única, sem espaço aberto para o diálogo. Está certo que muitos sacerdotes saíram pelas ruas a pé, em cima de caminhonetes e até sobrevoando de helicóptero para dar a bênção do Santíssimo Sacramento. Famílias esperaram durante horas, reunidas em oração. Transformaram em capelas suas garagens, varandas, janelas, com toalhas estendidas, flores, velas e imagens de santos de devoção. Emocionaram-se e se sentiram consoladas. Ali estava o rico potencial do catolicismo popular.
A questão é que a bênção não pode ser só de passada, num vazio de vínculo e de compromisso com as pessoas em suas realidades e situações específicas. Ainda mais porque o pluralismo religioso chama a Igreja a superar aquele modo de cristandade que se impõe como religião de toda a nação. A Igreja em saída empenha-se numa construção como que artesanal da abertura ao outro, criativamente, com o ecumenismo que contribui para a unidade da família humana (EG 244-245). E a dádiva da bênção divina virá pela consciência de que a imagem de Deus está gravada na pessoa de quem sofre:
São inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos. Para celebrar um culto agradável ao Senhor, é preciso reconhecer que toda pessoa, mesmo a mais indigente e desprezada, traz gravada em si mesma a imagem de Deus. De tal consciência deriva o dom da bênção divina, atraída pela generosidade praticada para com os pobres. Por isso, o tempo que se deve dedicar à oração não pode tornar-se jamais um álibi para descuidar o próximo em dificuldade. É verdade o contrário: a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu objetivo quando são acompanhadas pelo serviço dos pobres (FRANCISCO, 2020a).
Nessa dinâmica que dá vida ao culto, também é preciso repensar a pastoral voltada para as famílias. Estas, tantas vezes destroçadas e cada vez mais marcadas pela pluralidade religiosa, estão longe daquele modelo de moral familiar sob o controle do clero católico para manter a sociedade hegemonicamente católica.
A pastoral familiar precisará de todo o envolvimento e ajuda da comunidade eclesial para que seus animadores e agentes estejam em permanente formação, cultivando a espiritualidade na interação com o engajamento social. Como Jesus ao aproximar-se da viúva que enterrava seu filho único (Lc 7,11-17), da sogra de Pedro enferma (Lc 4,38-40), de Jairo e de sua filha que estava morrendo (Lc 8,40-56), é imprescindível a proximidade com as famílias em sua real condição de vida e, agora, com as marcas dolorosas da pandemia, para ajudá-las a experimentar a misericórdia de Deus (CNBB, 2019, n. 139).
Na realidade brasileira, principalmente nas grandes cidades, as famílias são atingidas por isolamentos permanentes e indeterminação de lugar. Muitas delas tornam-se pequenos aglomerados de indivíduos isolados, sofrendo com a crise econômica e o desemprego, e com uma rotina marcada pelo medo e pelo desamparo. Um culto que se furte a essa realidade e não se paute no direito e na justiça torna-se ofensa a Deus. Na palavra divina “quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9,13), está o princípio ético absoluto que inclui todos e põe a vida antes da norma e

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